SONETO AO CIGARRO
(Athos Fernandes - Shangri-La Poesias - 1979)
Sei que me fazes mal, que me causas bronquite,
e que à boca me dás o odor ruim do sarro,
sei que és o ancestral da minha faringite,
o avô da minha tosse e o pai do meu pigarro!
Sei que me pões insone e que me roubas o apetite,
que entopes meu nariz e me aumentas o escarro,
como presente estás nessa labirintite,
que é somente mais um dos males que narro!
Disso tudo bem sei, mas como irei deixar-te,
se és remédio eficaz nas horas tormentosas
das desditas de amor e desenganos da arte?
Sem ti fico boçal, desinsofrido e charro.
Contigo sou feliz e nado em mar de rosas,
ó gênio do prazer, satânico cigarro!...
A COBRA E A RÃ
(Athos Fernandes - Shangri-La Poesias - 1979)
Junto à lagoa
coaxa a rã;
seu canto entoa
toda manhã!
- A vida é boa,
se é livre e sã.
E a voz ressoa
num doce afã!
O canto escuta
a cobra astuta
do pantanal...
Quem manda a rã,
toda manhã,
cantar tão mal?
Assim dizia um sábio de renome:
- o canto desagrada a quem tem fome!
DEFESA PRÉVIA
(Athos Fernandes - Ofir - 1977)
Eu, sei de mim, culpa nenhuma tenho
em tudo que se faz contra a justiça,
pois só do meu trabalho me mantenho,
sem ter direito aos ócios da preguiça!
Puro não sou, nem faço disso empenho,
pois puro ninguém é na humana liça.
Creio num Deus real, morto no lenho,
e não nos deuses falsos da cobiça.
Em prol de um mundo bom, Justo e Perfeito,
herói da Fé, soldado do Direito,
espadachim serei, já que sou Athos.
E ao ver da turba as faces carrancudas,
não venderei meu Mestre, como Judas,
nem lavarei as mãos, como Pilatos!
PAPAI NOEL
(Athos Fernandes - Miscelânea Poética - 1979)
Papai Noel! Lindo sonho
de deslumbrante matiz.
Velho treteiro e bisonho
que vem de um frio país!
Ao rico atende, risonho,
mas nunca à pobreza quis.
Deixa um menino tristonho
e outro alegre e feliz!
Papai Noel, sempre injusto,
só traz presentes de custo
para os filhos da riqueza...
Quanto aos pobres não se importa!
- Sapatos rotos na porta,
pratos vazios na mesa!
SAPATO VELHO
(Athos Fernandes - Miscelânea Poética - 1979)
Hoje encontrei na rua desprezado
um sapato já velho e carcomido,
que foi, talvez por velho, preterido,
depois de um bom serviço ter prestado.
Aliás, o pobre estava bem rasgado...
Mas mui belo talvez tivesse sido.
Talvez em muita festa houvesse ido
no seu tempo de moço e conservado.
Olhei-o com desprezo e fui passando...
Mas depois, sobre o mesmo meditando,
consegui deduzir esta tolice:
Que tal como o sapato, a humanidade
tem riso e tem fulgor na mocidade,
mas só pranto e tristeza na velhice!
BRASIL CABOCLO
( Athos Fernandes - Miscelânea Poética - 1979)
Miséria, luto, tristeza,
eis o que existe no duro,
e do país o futuro
anda ao sabor da incerteza!
Sem ter um porto seguro,
corre ao céu da correnteza.
Gigante por antureza,
vagando às tontas no escuro!
Pobre nação que rebola
no bambolê coca-cola,
e tem prestígio de bamba...
Brasil, caboclo estouvado!
Mane Garrincha escolado
do futebol e do samba!
CARNAVAL
( Athos Fernandes - Miscelânea Poética - 1979)
Carnaval é bacanal
que faz, no tríduo momesco,
o bem transformar-se em mal
e o que é sublime em grotesco!
Mas muita gente, afinal,
tem com Momo parentesco.
Cai nessa orgia infernal
e faz da “pinga” refresco!
Pondo à mostra o que era oculto,
canta, grita, faz tumulto,
e o mais, que é próprio da festa,
Disfarça na quarta-feira,
saindo à rua, lampeira,
com cruz de cinzas na testa!
MAU NEGÓCIO
( Athos Fernandes - Miscelânea Poética - 1979)
Eu seria feliz se fosse um burro,
que após um dia de labor constante,
é livre de espojar e dar seu zurro
no fofo chão de um prado verdejante!
Porém, malgrado meu, o último urro
já dei na fase de macaco errante,
quando gente eu quis ser, para dar “murro”
na conquista de um mundo agonizante!
Hoje, vendo a “burrada” cometida,
pretendo permutar o meu estado
por tudo que o asno passa nesta vida.
Mas vejo, neste tédio em que me esturro,
que embora fique a sela em meu costado,
é muito mal negócio para o burro!
PARTIDA DE XADREZ
( Athos Fernandes - Miscelânea Poética - 1979)
Peão, quatro de rei, é o movimento
no início da enxadrística batalha.
Cavalo, três de bispo, e a passo lento
prossegue o jogo e tudo se embaralha!
A investida das pretas, num momento,
tem a fúria indomável da metralha.
Mas as brancas conseguem, com talento,
transpor galhardamente esta muralha!
Bispos, cavalos, torres - tudo avança!
E quando o fim da luta se avizinha,
o grupo branco vê, ao prepara-lo...
Que o rei, acossado, sem tardança,
fugindo ao forte assédio da rainha,
sucumbe ao xeque-mate do cavalo!
SONETO DE NATAL
( Athos Fernandes - Miscelânea Poética - 1979)
No Natal sempre lembro a minha infância pobre.
Os meus bois de sabugo e os barcos de papel,
a cocada baiana a dois vinténs de cobre
e uma velha colméia onde eu roubava mel!
Galhos frágeis mas sãos de tronco antigo e nobre,
eram meu pai Elpídio e minha mãe Isabel.
Por mais que sofra o humilde e em lutas se desdobre,
não pode dar ao filho um bom Papai Noel!
Por isso eu sou assim, desde a infância modesta,
infenso a este Natal de tão ruidosa festa,
e à tradição cristã sobre o Papai Noel...
Que ao rico tudo dá e tudo nega ao pobre,
até mesmo a cocada e os dois vinténs de cobre,
mais os bois de sabugo e os barcos de papel!
DORA
(Uma curiosidade poética)
( Athos Fernandes - Miscelânea Poética - 1979)
Dora, débil, diáfano diamante
do diadema divino desligado.
Dora, dúlcida deusa deslumbrante,
dote de Deus de dom divinizado!
Dora, divisa, dístico, descante
do dolorido Dante desterrado.
Dora, dileta diva dominante
das dores deste demo destronado!
Dora, doce desejo destemido
dentro dalma despótica, demente,
deste Dirceu de dádivas despido.
Dora, déia de Deus, digo, defino:
Deus deve defender-te docemente,
dentro da dor do drama do Destino!